Exclusivo: a professora Camila Jourdan fala ao DCM
Postado em 03 ago 2014
Camila Jourdan é doutora em Filosofia, coordenadora de pós-graduação na UERJ e, para a polícia, integrante de uma quadrilha armada. A mesma quadrilha de Sininho e Bakunin, outros personagens do inquérito que Camila considera literatura fantástica de má qualidade.
Por determinação de um habeas corpus, responde hoje ao processo em liberdade.
Tem 34 anos, é mãe de uma adolescente e especialista em um ramo da Filosofia conhecido como Analítica da Linguagem.
Ela concedeu a entrevista abaixo para o DCM:
Desde a Grécia Antiga, muitos filósofos tem sido presos. A Filosofia pode ser perigosa?
Pois é, todos conhecem a famosa citação de Marx, o filósofos teriam se limitado a interpretar o mundo, seria ainda preciso modificá-lo. A reflexão, no geral, é sempre perigosa para a ordem estabelecida, sobretudo quando é radical, isto é, quando se pensa até o fim, até as raízes das coisas, pois com isso podemos colocar em questão o que é aceito como dado necessário. Mas não se precisa fazer Filosofia para isso, muito menos se precisa da academia.
De fato, o que torna a Filosofia tão inócua hoje é justamente esta separação entre teoria e prática, que precisa ser combatida e que se relaciona diretamente com outra ideia bastante cara a este inquérito kafkaniano, a de que haveria aqueles que “agem nas manifestações” e seus “mentores intelectuais”. Esta construção ficcional da investigação é fundamental para a criminalização de alguns, para a fabricação de líderes e, em máximo grau, para tornar o movimento popular que existe hoje palatável e facilmente destruído. Esta é uma ideia que precisa ser desconstruída, não é como acadêmica ou intelectual que eu atuo politicamente.
Bakunim é mesmo um dos suspeitos?
Sim, isso serve como piada, mas mostra muito bem com que tipo de processo estamos lidando, isto é, baseado em que tipo de inquérito estão tentando destruir a vida das pessoas. É similar com o que ocorria na época da ditadura militar, quando tentaram prender Sófocles por conta das suas peças de teatro subversivas. Mas não deixa de ser uma grande homenagem: em seu bicentenário, Bakunin continua subversivo e procurado pela polícia. Agora todos querem saber quem é, afinal, este Bakunin, as pessoas estão procurando, estão lendo mais sua obra por causa disso, e isso é ótimo.
Nosso sistema carcerário costuma parecer bastante assustador e desumano, foi assim
na penitenciária de Bangu?
na penitenciária de Bangu?
Acho que o termo ‘desumano’ é ótimo, ser preso significa basicamente, na prática, deixar de ser humano.
Foram feitas denúncias muito graves de espancamento e tortura de menores numa instituição, outras denúncias ainda precisam ser feitas, mas o que me espanta é que isto não choca a sociedade, que isso não aparece como repugnante nos jornais. A sociedade deveria estar se mobilizando para fechar lugares como aquele ao invés de estarem preocupados com a livre interpretação de conversas telefônicas devassadas e descontextualizadas.
Digo isso porque isso está acontecendo agora. Existem crianças sendo espancadas diariamente em instituições estatais, e todos aqueles que se calam, que fingem que estas pessoas não existem, que não se movem para modificar esta sociedade, são coniventes com esta situação.
A polícia mata adolescentes rindo e as pessoas se preocupam com a violência nas manifestações! Que sociedade é esta? Outra coisa impressionante é como o sistema prisional e o sistema educacional se aproximam. Não precisa ler Foucault para concluir isso, basta ter frequentado uma escola com pedagogia tradicional e depois ser preso.
O sistema prisional leva ao extremo aquilo o sistema pedagógico já legitima, uma pedagogia do castigo e da culpa, da punição e da dor, da exclusão, da segregação e da humilhação. Por isso é toda uma sociedade que é cúmplice da existência de lugares como aquele.
Me impressiona muito que a única atividade permitida para as presas no presídio seja assistir cultos pentecostais, nos quais são ensinadas que a única esperança para elas é a salvação divina, nos quais são mais culpabilizadas por estar ali e ensinadas a se conformar, diante de um Deus que pune, um Deus que é a imagem e semelhança do Estado patriarcal. Como sempre, as igrejas servem ao Estado e o Estado ajuda as igrejas a manterem seus fiéis.
De quais crimes você é acusada? Considera-se culpada de algum?
Eu sou acusada de formação de quadrilha armada, isso seria simplesmente ridículo se não fosse a óbvia injustiça do estado de exceção no qual vivemos. Eu faço parte de um movimento político, que atua em ocupações sem-teto, em favelas, que é bastante ligado à luta por uma educação transformadora e por moradia, nós fazemos trabalho de base, divulgamos a proposta política anarquista e o modo de organização autogestionária.
Também temos alfabetização para adultos, aulas de capoeira, exibição de filmes, debates. Mas não é um projeto assistencialista, nós acreditamos na educação como peça fundamental na transformação da sociedade, negar educação a alguns é um modo de manter a dominação de classes, de excluir totalmente estas pessoas da autonomia sobre suas próprias vidas, educar é empoderar, promover um novo modo de educar é também transformar a sociedade.
Não somos uma organização para cometer crimes, não somos terroristas como se está tentando fazer crer, somos um movimento social organizado. Agora, o inquérito afirma que este grupo de educação popular é “uma fachada para treinar jovens entre 9 e 19 anos para a guerrilha”! Tem como levar isso a sério por mais de meio segundo?! Esta é mais uma das muitas piadas de mau gosto do processo.
Como vê a atuação da mídia no caso?
Estamos sendo perseguidos e criminalizados pelas grandes coorporações porque atrapalhamos seus interesses. Não é de se estranhar que eles voltem todas as suas armas contra nós e tentem transformar nossas vidas em um espetáculo exemplar facilmente vendido como mais uma mercadoria. E as armas são muitas, afinal estamos falando daqueles que exercem privilegiadamente poder e controle na nossa sociedade, e eles não querem abrir mão dos seus privilégios, eles utilizam toda sorte de manipulação e fraude. Isso não me espanta.
O que eles fingem não saber é que o problema não sou eu, não é a Elisa, não são os demais presos e perseguidos, o problema é todo um contexto histórico. Mas eles não podem prender e criminalizar todas estas pessoas, por isso é tão importante focar em alguns, fabricar líderes. O poder do espetáculo midiático na nossa sociedade é extremamente forte, por isso eles estão investindo no circo, na construção de uma realidade fantástica e também por isso é fundamental que todas as pessoas que nos apoiam se levantem neste momento.
A sociedade precisa tentar refletir para além do espetáculo midiático porque as vidas de várias pessoas estão sendo destruídas por fofocas e livre interpretações de conversas telefônicas devassadas e descontextualizadas antes mesmo de qualquer julgamento.
E da polícia e dos outros poderes do Estado?
A polícia chegou derrubando a minha porta às 6h da manhã e apontando uma arma para mim e meu companheiro, ele foi algemado. Minha casa foi revirada, a casa da minha mãe foi revistada. Eu me senti sequestrada, sequestrada pelo Estado. Mesmo não acreditando no Estado democrático de direito não dava para acreditar que chegaria a tanto.
Toda a operação é inacreditável, mandados expedidos sem nenhuma prova concreta, executados de modo totalmente arbitrário, um processo baseado em depoimentos altamente desqualificados com claro intuito de prejudicar alguns por questões pessoais, e, claro, tendo em vista evitar manifestações na final da copa.
Eu sei que o Estado se mantém pela exceção, por isso uso com muita reserva esta noção, mas o modo como esta operação ocorreu superou todas as minhas expectativas. O bom é que a máscara de suposta democracia cai, fica evidente o que é o Estado brasileiro. É até pior do que a ditadura militar porque se esconde sob a capa de uma falsa democracia.
Tanto faz então quem seja eleito? Parece uma posição radical aceitar que as urnas não sejam o caminho, parece algo que ainda assusta as pessoas…
Estamos vivendo uma crise no sistema representativo, é uma crise no modelo da representação, diretamente relacionada com a chegada da esquerda partidária ao poder e a confirmação de que isso não mudou nada, de que aquilo que os anarquistas sempre disseram estava correto: o próprio sistema impede qualquer mudança, qualquer transformação substancial.
O processo eleitoral é hoje uma grande briga de corporações empresariais, é mais um objeto de consumo da nossa sociedade de espetáculo, e as pessoas sabem que isso não pode trazer transformações reais. Daí o crescente número de pessoas que não pretendem votar e estas campanhas desesperadas do governo para evitar isso.
O que o sistema eleitoral faz é tentar canalizar toda a participação política de um indivíduo na sociedade a qual pertence para uma votação em uma sigla, só isso. Você vai lá e vota de dois em dois anos, e isso, dizem, faz com que vivamos em uma democracia. Ora, isso é obviamente falso, você transforma o cidadão em um consumidor de candidatos, e você cria uma sociedade alienada das próprias decisões que constituem o seu modo de vida.
Muitas pessoas não aguentam mais viver assim, drogadas pela mídia para aguentar uma vida sem sentido na qual você sabe que pra você morar, outros tantos tem que viver na rua, que pra você consumir, outros tantos são explorados e não tem direito ao básico.
É você sair de casa de manhã e ver famílias inteiras consumindo lixo e dormindo ao relento, e ver todo dia o povo ser morto na favela, e as pessoas tem que fingir que não estão vendo, mas isso destrói todos nós, não é possível viver numa sociedade como esta sem ser destruído também porque as pessoas não existem boiando no nada, o ser humano existe enquanto partícipe de uma comunidade e é isso, de mais básico, que está em questão.
Mesmo para aqueles que não se dizem anarquistas, nunca se disseram, não defendem esta posição, esta é uma verdade concreta do momento histórico que vivemos por isso o anarquismo encontra condições para se desenvolver hoje, por isso temos tantos ouvidos atentos.
Tomar as ruas em protestos com milhões de pessoas parece não ter sido suficiente para grandes mudanças. Como espera que as manifestações se desenvolvam daqui para a frente ?
A transformação de uma sociedade não se faz só com manifestação de rua, se faz com participação política real na base, com educação popular, com a construção de territórios autônomos. Mas é também verdade que as manifestações de rua cumpriram um papel fundamental desde o ano passado.
Eu sempre penso no ganho político destas experiências independente do que venha ocorrer daqui pra frente. Existe um ganho político para a nossa sociedade, um amadurecimento, um empoderamento, que não nos pode mais ser tirado. Este ganho inclusive não pode ser tirado por nenhuma criminalização, embora seja isso o que se tenta fazer neste momento.
Nós vivemos em uma sociedade que nunca viveu uma revolução popular, as mudanças que tivemos sempre foram “herdadas”, mantendo uma mesma oligarquia. O que houve no ano passado e o que ainda está havendo foi educativo, todo este processo que estamos vivendo, e é certo que estamos no olho do furacão, é histórico, nossa sociedade não é mais a mesma, apredemos muito e isso não pode mais ser tirado.
Nossos netos vão estudar a revolta do vinagre na escola, vão aprender o que foi a batalha da ALERJ, vão ler sobre este processo kafkaniano promovido para garantir megaeventos e o lucro de empresários.
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