Somos todas Marias
*por Claudia Queiroz
Eu tive uma tia chamada Maria. Era como a personagem cantada por Milton Nascimento, “uma mulher que merece viver e amar como outra, qualquer do planeta”. Dedicou a vida aos pais, irmãos e sobrinhos… Morreu solteira, “invicta” e sem filhos, ainda relativamente jovem. Foi ela quem cuidou do meu pai, o 13º de uma ninhada mineira.
Cresci ouvindo a música e me lembrando dela, da doçura brava daquela mulher que fitava os arteiros com as mãos fincadas na cintura, em formato humano de bule, vestindo sempre um vestido florido no comprimento do joelho, enquanto mantinha o cabelo coberto com grampos e bobs. Não sei se alguém na família levava a sério aquela cena…
“Mas é preciso ter força, é preciso ter graça, é preciso ter gana sempre, quem traz no corpo a marca possui a estranha mania de ter fé na vida”. Este trecho me fez compreender o quanto desta minha tia Maria vive em nós, mulheres.
Somos mestras em camuflar a raiva, driblar a tristeza e misturar dor com alegria, porque crescemos moldadas a nos comportar de acordo com padrões convencionais que são ou não aceitos.
Até hoje é comum julgarem nossas emoções como se fosse possível classificar a qualidade delas em algum catálogo. Respeitar a dor é algo perigoso? Sentir raiva, pouco nobre? Chorar, coisa de gente fraca? Apenas o controle emocional, isento de impulsos, segue como válido?
Eu me vejo como a tia Maria em milhões de situações… Não, eu não herdei os bobs, mas a inquietude de não concordar que se “deve chorar e não viver, apenas aguentar”.
Nos meus dias nublados eu procuro respeitar minha previsão climática, apesar de chover eventualmente e até deixar o sol entrar para formar um arco-íris no humor.
Mas o que dizer das amigas que sofrem com relações abusivas? Tati se envolveu com um narcisista, bígamo, manipulador e mau-caráter. Ainda sente amor por ele e busca, num tratamento de reconstrução psicoterápico, a saída para a dor.
Graça foi casada com um empresário poderoso por vários anos. Acostumada com os maus tratos só se viu obrigada a romper com o casamento quando a filha, ainda pequena, flagrou uma marca de mordida nas costas da mãe…
Regina encontrou, no celular do marido, uma foto dele comprometedora. Ele a assistente na empresa onde trabalham, numa selfie de motel. Era início de ano e ela viajava pelo interior do estado com os filhos do casal.
Joana cresceu num lar violento. Pai alcoólatra. A linguagem na casa dela, por muitos anos, era a violência. Ela luta para não bater tanto no filho de 2 anos, justificando que sente medo dele se machucar e que os tapas são a primeira reação que vêm, quando o menino cai.
De uma forma ou de outra, todas essas histórias têm algo em comum. Nós, mulheres, não desistimos de superar a dor porque acreditamos na intimidade com a felicidade. A luta é uma constante para transformar o que sentimos em algo bom, nem que seja apenas lição, como tentativa de lapidação pessoal. Esta é a estranha mania de ter fé na vida. O mantra das Marias, que sofrem, mas sonham, porque têm a magia no dom da força como sinal de alerta.
Claudia Queiroz é jornalista.
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