segunda-feira, 30 de junho de 2014

A política da Copa – o beiço contra versus a cegueira a favor



Postado em 29 jun 2014
Brazil fans
Os torcedores brasileiros
Sempre combati o espírito “Não Vai Ter Copa”.
Agora cabe uma palavra sobre o movimento contrário, que tomou corpo no Brasil ao longo dessas duas semanas êxtase futebolísitica, que denuncia e espezinha o denuncismo fatalista do “Não Vai Ter Copa” como se ele fosse uma campanha contra o Brasil – e principalmente contra o governo, contra Dilma e o PT, contra a emergência dos excluídos que ela representaria.
Trata-se de um movimento pendular: antes aquele espírito de porco queria que tudo fosse para o inferno. Agora, esse espírito de poliana interessada revida, e celebra, como se, desde o início, tudo estivesse correto e como se tivéssemos a obrigação de estarmos certos de que tudo daria certo em relação à Copa no Brasil.
Bom, já aí tem uma baciada doida. O Brasil não é o governo – qualquer que seja ele. Igualar a nação a seus governantes é coisa de ditadura populista – qualquer que seja ela. E também não acho que PT e Dilma possam, ainda, e desde há muito, ser considerados representantes dos excluídos no Brasil.
Enquanto eu me debatia contra o espírito “Não Vai Ter Copa”, que desejava melar tudo e apostava no quanto pior melhor, nunca deixei de reconhecer todos os problemas que houve na construção da Copa do Mundo no Brasil, no plano institucional. Não são visões contraditórias. Trata-se apenas de um paradoxo tipicamente brasileiro: fizemos a coisa certa pelo país – a Copa do Mundo no Brasil – de uma forma bastante equivocada em uma série de aspectos.
De algum modo, o “Não Vai Ter Copa” ficou tido, nos círculos de esquerda, como um movimento de direita, com viés oposicionista, daqueles que não votarão na Dilma em outubro. (A mim, parece muito mais um movimento anarquista, extremista, que não se filia a nenhuma das forças políticas hoje hegemônicas no país, e que, além disso, embute uma espécie de reação histórica e pessoal daqueles que nunca gostaram de futebol.)
A presente reação àquele beiço antiCopa, que pega carona no clima de alegria e de celebração que estamos tendo com a Copa, está reunindo sob sua bandeira o pessoal de esquerda, governista, lulista, enfim, daqueles que votarão na Dilma em outubro.
Essa dicotomia é equivocada. A régua que a sustenta é torta, capciosa, e dá guarida a muita desonestidade intelectual entre os debatedores de lado a lado.
Que bom que está tendo Copa e que ela está sendo fantástica. Em termos de futebol, dentro das canchas, e em termos de experiência para o país, aqui dentro, e de exposição do Brasil, lá fora, também.
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Que bom que nossas ineficiências não foram suficientes para detonar o evento.
Mas não percamos de vista que o que está salvando essa Copa, sobretudo, é o povo brasileiro. Nossos dirigentes falharam muito. Primeiro: as expectativas eram baixas em relação àquilo que o Brasil entregaria, então está todo mundo surpreendido positivamente. (De novo: o caos não aconteceu, e isso é bom e gera um sentimento de tranquilidade. O que não quer dizer que estejamos entregando um evento com organização de primeira linha. Segundo: apenas 600 mil visitantes estrangeiros encararam a aventura de vir ao Brasil. É pouco. A cidade de Las Vegas, em maio de 2014, recebeu 3,5 milhões de visitantes. Em um mês. Ou seja: 600 mil turistas Las Vegas recebe a cada cinco dias… Terceiro: entre tapumes e puxadinhos e áreas temporárias, que desaparecerão depois da Copa, não gerando nenhum benefício permanente para o país, embora nos tenham custado os olhos da cara, vamos levando, em termos de infraestrutura, mas é o futebol que acontece dentro dos estádios, eles também, muitas vezes, inacabados, e nas ruas, na festa das pessoas se encontrando e curtindo de norte a sul no país, que reside o grande sucesso dessa Copa até aqui.
No aspecto institucional, em contraste, nada mudou com a boa surpresa de um evento que está gerando muita felicidade para um monte de gente, além de boa dose de boa publicidade para o Brasil no exterior: houve atrasos, inépcias e superfaturamento. Ou alguém acha que 28 bilhões de reais é um preço justo pelas obras que recebemos? Ou a grossa polvadeira que vi no aeroporto de Confins, em Minas Gerais, é miragem? Quem quiser cobrir os próprios olhos para enxergar apenas uma miragem que lhe permita continuar crendo em suas crenças, que o faça. Mas é favor excluir-se do debate sério por absoluta falta de honestidade intelectual.
A cobertura da imprensa brasileira tem sido outro alvo para o revide do pensamento governista e de esquerda. Estou longe de querer defender a imprensa brasileira. Como ocorre com várias outras de nossas instituições, o jornalismo brasileiro não está entre os melhores do mundo. E tenho visto, nos últimos anos, órgãos de imprensa simplesmente deixando de fazer jornalismo para se dedicarem a fazer política, a atuarem como palanques para teses dessa ou daquela cor, e se esquecendo dos fatos, e tomando partido apaixonadamente nessa ou naquela facção ao invés de permanecerem na posição de observadores e cronistas da história. O jornalismo, no Brasil, nos últimos tempos, virou um debate acalorado e religioso e desinteligente e polarizado entre teses de direita e de esquerda – conceitos que, a meu ver, nem cabem mais como meios para compreender e definir a realidade. A reportagem cedeu lugar à opinião. A notícia e sua análise não valem nada perto do dogma. Ninguém mais quer saber o que está acontecendo. Importam apenas as tiradas oratórias e os discursos inflamados e as ofensas e as palavras de ordem lançadas como farpa de lado a lado. Já disse isso aqui: voltamos ao anos 70, talvez até antes, ao tempos de Getúlio e de Lacerda, só que com Facebook.
Tudo isso é verdade e é lamentável. Ao mesmo tempo, no tocante aos problemas em relação à preparação brasileira para a Copa, havia, sim, o que reportar. A imprensa, mesmo com todo o seu parcialismo, estaria fazendo um desserviço ainda maior à opinião pública se deixasse de relatar os atrasos e os superfaturamentos. Ou não houve? Saia da arquibancada por um instante e se coloque na posição de um editor, aqui no Brasil ou lá fora, já que a imprensa internacional também era bastante pessimista, diante do que via, em relação às nossas chances de entregar tudo dentro do prazo e do orçamento. (Coisa que, de fato, não entregamos, não esqueçamos disso.) Como você reportaria o andamento das obras nos estádios de São Paulo e de Manaus? E o uso do dinheiro público? E as trapalhadas em Curitiba? E o entorno do Beira Rio em Porto Alegre – que ainda embarra os sapatos de quem chega para assistir uma partida? Como você endereçaria a questão de que 8 sedes viraram 12 – e quase viraram 16 – por amarrações políticas com os senhores feudais locais?
Tão equivocado quanto o movimento “Não Vai Ter Copa”, que queria colocar fogo no circo, é a ideia que se quer construir agora de que não houve incompetência, de que não houve ineficiências, de que os problemas eram pura má vontade da “mídia golpista” – ainda que uma mídia antigovernista esteja aí, bradando claramente suas manchetes enviesadas. Achar que tudo está errado e que nada dará certo é burro e desonesto. Achar que tudo está certo, que tudo vai bem, e que todos os prognósticos sombrios eram infundados e compunham apenas uma grande mentira orquestrada pelos “poderosos” (ei, quem está no poder nesse país em que todo o poder advém do Estado?) é tão burro e desonesto quanto.
Talvez haja, nessa reação de esquerda, para a minha dupla decepção, a ideia de que o jeito de realizar as coisas no Brasil é esse mesmo – pagando 10%, atrasando os contratos para cobrar mais caro depois, deixando tudo para a última hora e entregando inacabado e pela metade, para ter de refazer logo em seguida, e tudo bem porque da teta do Estado jorra um dinheiro que, por ser de todos, não é de ninguém. Talvez haja aí a ideia de que o que importa é o resultado e de que os fins justificam os meios. O que significaria instituir um perdão retroativo a toda aquela estirpe de políticos, de Adhemar de Barros a Paulo Maluf, cuja prática sempre execramos. Maluf, por exemplo, construiu túneis importantes para São Paulo, enquanto, na paralela, fornia suas contas particulares e ilegais no exterior. A ponto de hoje procurado pela Interpol. Se o que importa é chegar lá, minimamente, como estamos vendo nessa Copa, e se o fato de pagarmos 5 por um item que vale 1 é um detalhe irrelevante, então celebremos Maluf. (Ops, será que é por isso que ele foi convidado a subir no palanque?)
Nada disso me serve. Nem o beiço contra nem a cegueira a favor.
Adriano Silva
Sobre o Autor
O jornalista Adriano Silva é consultor digital, escritor e mantêm o blog Manual de Ingenuidades (www.manualdeingenuidades.com.br). Ele ocupou cargos como o de diretor de redação da revista Superinteressante e Redator Chefe do Fantástico,

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