Mudança de hábito
*por Claudia Queiroz
Não é delírio meu, tampouco elucubração, mas durante esse período de quarentena um pensamento veio à minha mente: de certo modo, já vivíamos isolados há muito tempo, não apenas agora! Eu e os meus, você e os seus. Nunca aprendemos a pensar no todo quando não nos permitimos sentir parte dele, de algo maior. Então, fechados no nosso mundinho habitual, frequentamos os mesmos lugares, geralmente com as mesmas pessoas, fazemos as mesmas coisas e, muitas vezes, apenas disputando, possivelmente sem perceber, posições para ter algum tipo de destaque nesses grupos. Coisas da autoestima.
Hoje, com a ameaça de um vírus, a orientação de ficarmos em casa e evitarmos aglomerações, é que me dei conta que as distrações sociais, antes limitadas, ficaram ainda mais restritas.
Como não gostamos de proibições, reclamamos, reclamamos, reclamamos…, até que este período acabe e a gente apenas volte à limitação anterior. Precisamos aprender a agradecer. Afinal, uma crise nos faz pensar. Isso é graça! Já escrevi sobre isso, mas volto a dizer o que significa essa palavra tão cara para todos nós: ‘agradecer’ é deixar a graça descer! Portanto, estamos vivendo um grande presente!!!
Esse é o princípio de qualquer relação espiritual mais profunda. Talvez um objetivo bem interessante para essa ‘adversidade global’. Não é o templo, a igreja, os cultos ou qualquer cerimônia que traz a proximidade com o sagrado. É a harmonia que você encontra dentro de si e, também, intimidade com o amor…
Quando nos vemos fora da zona de conforto, ou seja, deixando de seguir rotinas e com menos liberdade de espaço para nossas ações (e distrações), os contrastes acabam potencializados e passamos a enxergar além do comum. Pensamentos surgem para serem lapidados; os conflitos, sanados; dúvidas, esclarecidas; desafios, superados…, e assim por diante.
Recentemente, conversando com uma amiga, ela chamou minha atenção sobre um antigo hábito que, com o tempo, perdemos. O de visitarmos pessoas conhecidas. Ela me perguntou há quanto tempo não passo uma tarde na casa desta ou daquela amiga… Me lembrei que antigamente eu sabia os números de telefone de todos os conhecidos e que minha casa, na juventude, tinha gente chegando e saindo o dia todo. Vinham sem avisar, final de tarde, hora do bolo sair do forno ou da clássica pizza de domingo…, hum…, o interfone tocava, a campainha soava, a porta se abria e a gente, alegre, se reunia em volta da mesa, se espalhava pelo sofá, se acomodava na varanda…, porém, juntos. Tudo era multiplicado por três. Meus amigos com os de mais duas irmãs, com idades próximas à minha. Meus pais adoravam esse movimento enorme na vida deles. Bem, eram outros tempos…
Hoje, nossa escala social está praticamente restrita a amigos próximos, familiares mais chegados e…, às redes sociais, com ‘amigos virtuais’, sem bolo ou pizza. Uma virtualidade mantida e até provavelmente ampliada durante essa quarentena prolongada, desde que os assuntos do dia nos interessem.
Existem, claro, lugares que gostaríamos e até poderíamos frequentar, mas agora com os devidos cuidados de distanciamento social, máscaras e assepsia. Desde que não haja aglomeração, tudo bem. Ao que tudo indica, vai demorar um pouco mais para tudo voltar aos eixos.
No entanto, nada mais será como antes. A começar pela avaliação da real necessidade da quantidade de roupas e calçados no armário. Muitas delas fora do uso há tempos… Então por que acumular? Gastos desnecessários; discussões tolas e sem o menor sentido… “Obrigada VÍRUS”!
Esse coronavírus veio para nos ensinar a viver melhor. Desapegar, olhar para a própria alma, para a vida que construímos até hoje. Isso nos permite exercitar a humanidade, sempre compreendendo que todos nós lutamos para sobreviver. Nós e os ‘bichinhos’ lá fora… Como nossa estrutura é mais complexa, e nos foi permitido trabalhar a inteligência, vamos vencer a pandemia. É apenas uma questão de prazo de validade.
Enquanto isso, a mãe natureza continua trabalhando. Durante esse período em que permanecemos confinados no ‘cantinho do pensamento’, em nossos lares, ela age despoluindo um pouco mais terra, água e ar. Uma nova realidade está sendo preparada para entendermos definitivamente que não somos os donos de tudo. E que limitações existem para aprendermos a nos respeitar e assim conviver melhor, principalmente com as nossas diferenças.
Se o silêncio é capaz de trazer alguma lucidez, este é o momento para dar sentido a esse choque de realidade. Acredito que, de vez em quando, deveríamos impor a nós mesmos, independentemente de qualquer crise, um toque de recolher para que possamos colocar ordem nossos pensamentos.
Vazios nem sempre precisam ser preenchidos. Às vezes, querem apenas ser compreendidos. Afinal, nos esvaziando é que permitimos preencher de alma a vida que merece fluir. Deixe ir.
Claudia Queiroz é jornalista.
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