Perdeu, playboy: a nova derrota do neoliberalismo no Brasil
Postado em 30 out 2014
De certo ponto de vista, a eleição presidencial que ora se encerra não trouxe tantas novidades ao panorama político nacional.
De um lado, seguir num rumo já traçado, com ajustes de percurso. Do outro, discurso “mudancista” que não significa, rigorosamente, mudança alguma: remoção do “malfeito”, ampliação do “bem feito” e continuação do “muito bem feito”.
Nem mesmo os folclóricos “coxinhas” representaram, rigorosamente, algo inédito. Oligofrênicos por formação e opção, eles já haviam marcado presença nos acontecimentos de 1964, seja cerrando fileiras com a TFP nas famosas marchas, seja despejando sem dó nem piedade em ouvidos alheios as teses do IPES, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, seja ainda vociferando contra populistas e trabalhistas as diatribes de algum artiguete ou editorial mais fresquinho.
Talvez a maior novidade dessas eleições tenha sido o aparecimento em número impressionante, para seus padrões, de algo com até então pouca tradição e densidade cultural por estas bandas: os jovens neoliberais brasileiros.
Eles inclusive foram às ruas, em um ou outro momento, para fazer coro com os que gritavam palavras de ordem contra a “presidente terrorista”, o “partido que está afundando o Brasil” e os “regimes comunistas de Cuba e Venezuela”.
Mas as ruas não são seu ambiente preferido. É mais fácil encontrá-los nas faculdades (públicas e privadas), nas empresas (normalmente em cargos de gerência, se de pouca sorte, ou de direção, se assim aprouver aos pais ou parentes, quando proprietários) e até em gabinetes de agentes públicos (prefeitos, secretários e governadores).
Sua atuação mais engajada deu-se nas redes sociais. Era comum vê-los “trolando” em blogs e sítios considerados progressistas ou esquerdistas, normalmente com identificações (“fotinhos”) que remetiam a instituições ou teóricos vinculados ao (neo) liberalismo.
Egressos de “cursinhos walita”, repetiram a torto e a direito um jargão econômico próprio das escolas (neo)liberais, convictos de que sua profissão de fé lhes garantia um certificado de cientificidade absoluta. Membros zelosos de um credo que era a grande modinha do século XIX, dispensavam-se de apresentar demonstrações convincentes para seus argumentos, talvez por achá-los por demais evidentes.
Assim como os grandes patriarcas da sua religião haviam feito no passado, se os eventos da vida social revelavam incongruências com a teoria, culpavam a impaciência humana pela não chegada de um futuro radiante; um futuro sempre hipostasiado, vale lembrar, mas seguramente redentor.
O neoliberalismo não é nenhum recém-nascido. Ele surgiu como um movimento teórico, político e ideológico de contestação frontal e radical às sociedades do capitalismo avançado do segundo pós-guerra, marcadas por intervenção estatal na economia, políticas redistributivas e alguma harmonização das relações entre classes, tudo isso num contexto maior de crescimento econômico e redução das desigualdades sociais. O Estado do Bem-estar Social é a expressão máxima desse período, os “anos dourados” do capitalismo (1945-1973).
Seu “manifesto de lançamento” é a obra “O Caminho da Servidão”, de Friedrich Hayek, publicado na Inglaterra, em 1944. Hayek era austríaco de nascimento e migrou para a Inglaterra, em 1931, aceitando o convite que lhe fora feito por Lionel Robins para lecionar na London School of Economics e, desse modo, fortalecer as barreiras liberais contra as investidas das teorias mais favoráveis à intervenção do Estado na economia.
A Grande Depressão mostrava então todo seu horror e o tiro de misericórdia na teoria econômica liberal viria pouco depois, com o surgimento e rápida ascensão do keynesianismo. De fato, A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, de John Maynard Keynes, publicada em 1936, oferecia respostas muito mais críveis e passíveis de aplicação relativamente aos graves problemas econômicos e sociais da época.
Hayek teve a perseverança típica dos que acatam uma derrota sem, contudo, aceitá-la como eterna. Incapaz de vencer Keynes em campo aberto do “capitalismo organizado” e de um Welfare State já em formação, tratou de organizar uma aguerrida resistência. Convocou, em 1947, para a estação suíça de Mont Pèlerin, sob generosos patrocínios de empresários abastados, um encontro de notáveis intelectuais de ambos os lados do Atlântico, todos inimigos declarados do Estado social europeu e do New Deal norte- americano.
Além do próprio anfitrião, estiveram lá homens como Karl Popper (notabilizado por seus vitupérios contra Hegel em “A Sociedade Aberta e seus Inimigos”), Milton Friedman (que viria a se tornar bastante conhecido não só dos norte-americanos, com seu “Capitalismo e Liberdade”, como também dos latino-americanos, pela formação de sucessivas levas de economistas, os chamados Chicago boys) e ninguém menos que Ludwig von Mises, antigo mentor do próprio Hayek e provavelmente o mais duro e intransigente liberal do século XX.
Desse encontro resultaria a criação da Sociedade de Mont Pèlerin, espécie de seita neoliberal altamente organizada e ramificada, com a missão de promover o combate sem tréguas ao intervencionismo, às políticas sociais e ao próprio caráter “organizado” do capitalismo. Se os socialistas já contavam há décadas com algumas internacionais, nascia naquele momento a Internacional Liberal. Hayek foi escolhido pelos seus pares como seu primeiro presidente, e “reinou” absoluto entre 1947 e 1961.
Sob sua batuta, a organização recém-criada dedicar-se-ia sistematicamente a promover encontros periódicos e, sobretudo, exercer influência sobre governos, burocratas, intelectuais em geral e a própria opinião pública.
Mais do que isso, a Sociedade de Mont Pèlerin viria a servir de “espelho” para diversos think tanks com a mesma matriz ideológica, criados em profusão a partir dos anos 1950, sobretudo no eixo anglo-saxônico do capitalismo. Por ironia, e não sem contradição, esse movimento de resistência neoliberal confirmaria, por analogia, uma máxima de Karl Polanyi em sua obra “A Grande Transformação”: enquanto o keynesianismo e o intervencionismo foram medidas práticas, adotadas pelos governos para conter a Grande Crise e retirar a economia e a sociedade da prostração, o neoliberalismo foi organizado e planejado.
A desregulamentação das economias e a consequente libertação do grande capital financeiro das amarras estatais, a partir dos anos 1970, minaram a continuidade virtuosa das políticas keynesianas e redistributivas. Posteriormente, o fim da Guerra Fria, com a dissolução do bloco soviético, concedeu ao neoliberalismo um caráter triunfalista e a chance de uma expansão inaudita.
Nesse contexto totalmente reformulado, o keynesianismo, a social-democracia clássica e o próprio Welfare State não foram páreos para os gurus neoliberais, Hayek à frente, seguido de Friedman.
Em seu “Institutos Liberais e Neoliberalismo no Brasil da Nova República”, Denise Gros descreve e analisa a teia de ligações entre os diversos think tanks liberais espalhados pelo mundo, bem como seus vínculos estreitos com grandes corporações e fundações privadas, não por acaso pródigas nas suas doações a esses organismos.
No Brasil, ao desembarque dessas instituições seguiu-se imediatamente a escolha da matriz (neo)liberal específica como eixo estruturante de ações, feita por seus mantenedores. O fato de que tal escolha tenha recaído sobre a chamada Escola Austríaca de Economia, reconhecidamente intransigente e avessa a qualquer igualdade produzida por intervenção estatal, por menor que fosse, é reveladora da natureza da direita empresarial nacional.
Reacionários como Mises, um dos grandes nomes dessa mesma escola e notabilizado por sua saudação ao fascismo europeu nos anos 1920, tiveram, enfim, seu momento de acolhida em terras tropicais.
Um debate entre o político Ciro Gomes e Rodrigo Constantino, um nome conhecido dos “cursinhos walita” neoliberais, já dava mostras do que a sociedade brasileira deveria aguardar. Acossado pelo ex-ministro sobre a existência factual de cartéis, oligopólios e mesmo monopólios que distorcem a “racionalidade” do sacrossanto mercado, o anedótico neoliberal saiu-se à la Mises: arguiu a célebre “soberania do consumidor”.
Teoria pobre, miserável intérprete. De todo modo, o recurso a Mises, desajustado spenceriano vivendo em pleno século XX, fornecia preciosa chave: o neoliberalismo tupiniquim já não se processava tão somente em cultos de determinadas “seitas”; aparecia publicamente, desavergonhado.
No fundo, no fundo, o neoliberalismo parece despertar ambiguidades, mesmo em seus oponentes. Ao mesmo tempo em que deve ser levado muito a sério, especialmente por suas deletérias consequências para as sociedades que, inadvertidamente ou não, o adotam, não deixa de ser risível enquanto pretenso campo do conhecimento.
A taxativa sentença “não há alternativa”, proferida pela confessadamente hayekiana Margaret Thatcher, contém um misto de cinismo e totalitarismo. Cinismo por razões óbvias, uma vez que é negada por todos os meios às classes subordinadas a chance de organizarem-se para resistir à investida neoliberal.
E totalitarismo porque, uma vez implantado o neoliberalismo, há uma tendência implacável para que toda e qualquer dimensão da vida social seja capturada por sua lógica estritamente mercantil. Espécie de versão tragicômica da atualidade mundial, o liberalismo revisitado das últimas décadas é o espírito deste tempo, a ideologia por excelência da acumulação capitalista mais brutal, geradora de imenso rastro de iniquidades sociais.
Perderam, playboys.
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