sábado, 5 de junho de 2021

 

Minha filha me odeia às vezes e, tudo bem!

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*por Claudia Queiroz

Tudo aquilo que não explicamos para o outro acaba sendo interpretado, certo? Assim nascem as verdades e tantas versões delas. Adultos e crianças fazem isso na intenção de criar respostas que acomodem pensamentos vibrantes. É instintivo, humano, porém, muitas vezes o berço equivocado de problemas, traumas e dificuldades que enfrentamos ao longo da vida.

Dizem os estudiosos que na parte posterior do cérebro encontra-se a área responsável pelas nossas reações instantâneas. Ali moram as identificações de medo, raiva, angústia, mágoa, dor, alegria, euforia, etc etc etc. Por mais que o ser humano se considere como espécie superior pela capacidade de pensar, é comum vermos adultos perdendo o controle das emoções porque não conseguem justificar conflitos na racionalidade, desequilibrada imediatamente a cada frustração.

E como resolver isso? Ampliando a intimidade com as emoções. Sentir para fluir pode ajudar a liberar os registros guardados. A proposta de leveza garante que até mesmo a respiração livre acontece em outro padrão, diferente e mais honesto consigo mesmo e na troca com o planeta.

Diante da importância de sentir e de ensinar sobre as emoções para minha filha, de 4 anos, vou contar aqui uma experiência vivenciada recentemente com ela. Em um momento de raiva, furiosa, ela me disse que iria embora de casa e que eu não era uma boa mãe porque não deixei ela fazer algo que provavelmente nos atrasaria para ir à escola.

Evidente que minha filha é mais importante que qualquer relógio, alarme ou carimbo de atraso na agenda escolar… Mas eu tento manter o mínimo de disciplina até por entender que a rotina traz segurança à criança. No momento de tensão eu acolhi a emoção que ela estava sentindo e validei.

-Filha, eu sei que você está sentindo raiva da mamãe, porque gostaria de brincar um pouco mais, mas agora não da. E vou te contar uma coisa, eu também sinto muita raiva às vezes. É normal e logo vai passar. Pode esbravejar do jeito que quiser, e quando conseguir, me diga, do fundo do seu coração, acha mesmo que não sou boa mãe?

A negativa da resposta veio aos prantos, com um abraço apertado e uma sensação de tristeza dela, misturada com remorso ou arrependimento, imagino eu, interpretando a situação.

Parece um final feliz, mas é só o começo da construção do reconhecimento das emoções da minha pequena diante do que ela sente. Quem lê deve estar achando que fui espetacular na tentativa de controle da fúria da minha menininha. Mas eu errei e vou mostrar porquê. Na primeira parte, reconheci a emoção, tão repreendida pelas mães castradoras. Isso foi maravilhoso! Porém, eu precisava ter dado mais tempo para a segunda fala, que era a da pergunta sobre ser ou não ser uma boa mãe. Na pressa, pela falta de tempo, achei que estaria resolvendo isso na cabecinha dela e acabei induzindo uma resposta que me agradasse imediatamente. E isso não foi legal da minha parte. Foi inconsciente.

Minha função como mãe é conduzir as experimentações do que minha filha sente. Só que com habilidade em não me alterar, gritar ou brigar, o que certamente representa um avanço na resolução de conflitos, eu me excedi numa espécie de violência invisível, porque reprimi o sentimento dela para que engolisse a raiva. Isso é péssimo, porque ela não conseguiu liberar a emoção que fica registrada no corpo dela. Da próxima vez, vou esperar para perguntar se voltei a ser boa mãe e explicar a situação quando tudo estiver bem. Simples, né?

Raiva é um sentimento muito maltratado por nós. Ela é velada, proibida, mal interpretada e pouco reconhecida. Não fosse o impulso que a raiva provoca, não colocaríamos limite em quem comete algo que nos machuca, perturba ou incomoda. Por isso ela é fundamental para trazer, junto com toda a força visceral, aquela energia que impõe o que permito ou não que o outro faça comigo.

No momento que tropeço no reconhecimento desta emoção, que deixo pra lá ou me distraio com outra coisa, meu corpo ainda não esqueceu o que vivi e vai guardar, para desencadear uma reação ainda maior quando se sentir em “perigo” numa próxima vez. E aí será ainda mais fácil perder o controle, exagerar ou ‘transbordar o copo’, como diz a sabedoria popular, simplesmente porque não dei conta lá no passado. E minha consciência também não sabe disso!

Não vou medir palavras para afirmar que tão importante quanto saber fazer escolhas é assumir as consequências. No entanto, de nada vale tudo isso se não soubermos sentir. Lembre-se de quando foi criança. Quantas vezes ouviu “engole o choro”, “para de chorar”, “criança não tem que querer”, ficou de castigo por horas no quarto depois de apanhar. Essa violência era aceita socialmente.

Violência invisível

Como mãe, ouso dizer que violentamos nossos filhos toda vez que proibimos a liberdade de expressão deles. Padrões rígidos de comportamento colocam a criança numa forma que a tira do próprio formato, só para que ela seja aceita pela própria família. Esse jogo de poder é cruel para quem depende de um adulto para sobreviver.

Pense bem, aquele serzinho chegou ao mundo totalmente dependente de uma mãe. Quando ouve grito, é agredido ou punido, acaba paralisando de medo desta figura que deveria ser a protetora. Mas a pior coisa que essa criança sente é a perda de amor deste porto-seguro, então se adapta para não incomodar ou aborrecer o grandão. Ela se anula para começar a agir feito golfinho adestrado, pronta para ganhar a sardinha após uma gracinha.

Então esta pessoa pequena cresce mal sabendo reconhecer suas próprias emoções, quem dirá se relacionar com alguém. Ela não teve o direito de sentir por si mesma… Restou uma criança interior ferida naquele coração, por tanto tempo, precisando ser resgatada com o maior amor do mundo, o próprio, que ela pouco sabe dar valor.

Vamos quebrar moldes e despertar o potencial dos nossos pequenos? Existe muita informação para aprender e praticar como educadores, caso contrário, de nada valeria prepararmos um filho para o mundo (e vice-versa). Se o seu pequeno reflete o que você não gosta ou aceita, esfregue os olhos e preste atenção no que você está mostrando para ele. Esta é a pista do seu resgate. Aproveite e agradeça, porque nossos filhos ajudam a educar a gente.

Claudia Queiroz é jornalista.

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