‘VOLVER LA VISTA ATRÁS’!
(Mario Vargas Llosa - O Estado de S. Paulo, 05) O romance do colombiano Juan Gabriel Vásquez, Volver la Vista Atrás, que acaba de receber um prêmio literário importante no México, terá muitos leitores. É um dos grandes romances já escritos em nossa língua e seu autor nos disse que, ao contrário de outros, tudo que se passa nele aconteceu na vida real, o que lhe deu muito trabalho na hora de escrevê-lo.
Acredito que nem mais nem menos que as histórias inventadas, pois utilizar histórias “reais”, como muitos romances fazem, não aumenta nem diminui o esforço de escrevê-los. O difícil é a forma de contá-las para que pareçam fictícias, algo que os leitores sempre esperam dos romances, e ele encontrou essa forma, relatando seus episódios em crônicas muito próximas, que dão a impressão de confissões e segredos confiados aos leitores, como se divulgassem a intimidade de uma experiência familiar reservada que, de repente, graças a essa magia que acontece nos bons romances, se espalhasse por todo o mundo.
O personagem de Fausto Cabrera, um espanhol filho da guerra civil, que fugiu para a Colômbia, onde se tornou documentarista, teve uma vida dura e difícil, como quase todos os exilados, e foi cineasta, como seu filho Sérgio, um dos personagens principais da história; a outra é sua irmã Marianela. A aventura vivida pelos dois é realmente excepcional. Seu pai foi cineasta, além de militante político, e seu filho Sérgio também, a quem a Cinemateca de Barcelona presta uma homenagem, exibindo vários de seus filmes, além de entrevistá-lo.
É aqui que surgem surpresas incríveis. Pois Sérgio não foi apenas um cineasta de destaque, autor e diretor, entre outros filmes, do muito estimado e discutido A Estratégia do Caracol. A vida dos dois irmãos teve uma reviravolta espetacular quando seu pai descobriu o maoismo, tornou-se um maoista colombiano de ponta e decidiu educar seus filhos, Sérgio e Marianela, na República Popular da China, fazendo dos dois jovens, praticamente duas crianças, dois guardas vermelhos, como os milhões de meninos e meninas que as convicções de Mao Tsé-tung transformaram, naqueles anos, em soldados que transformariam o gigante chinês no instrumento da revolução mundial, substituindo a URSS nesta tarefa.
As páginas que narram as aventuras dessas duas crianças na revolucionária República Popular da China, agitadas pelas ideias e sobressaltos de Mao, são comoventes; as enormes dificuldades que precisam superar para se adaptarem a um ambiente tão diferente daquele em que foram criadas, adotando uma língua muito distante da sua, assim como os costumes rígidos e a formação militar que os converte em pequenos soldados, são angustiantes e exaltantes, precisamente porque tudo está narrado sem dramas, nem misericórdia, de maneira imparcial e com absoluta sobriedade.
A história da família é assim, porque, como o pai, a mãe também milita nessa brigada, e a compreensão e o espírito que reinam entre esses quatro personagens é invejável, sem rebeliões ou protestos, em total obediência. É impossível não admirar as páginas que narram esses dias, meses e anos, em que os pais, de longe, na Colômbia, traduzem suas convicções maoistas em ações, e em que, na China, essas crianças se metamorfoseiam e renascem, instruídas pelas cartas de seus pais e pelos seus novos guias, que os reeducam e transformam, para que sejam, no retorno ao seu país, o exemplo a seguir por todos os jovens e crianças como eles.
São páginas muito bonitas, de uma luta que se adivinha, que está oculta para que seja mais vívida, uma luta íntima e secreta, inclusive entre os próprios irmãos, que raramente falam sobre o que vivem, e esse heroísmo secreto é, para mim, o melhor do livro, mesmo que depois, quando as crianças se tornam jovens, voltam para a Colômbia e se alistam, seguindo as instruções de seus pais, nas guerrilhas maoistas, os acontecimentos sejam mais espetaculares e dramáticos. Mas essas páginas, que narram a aventura secreta daquelas crianças, sua profunda transformação, sua mudança de corpo e alma, estão narradas admiravelmente, com uma frieza deliberada, para que tudo isso se destaque e se converta em um heroísmo secreto e cotidiano.
Até que chega a voz remota do pai – não sei se devo admirá-lo ou odiá-lo –, através de uma carta que leva semanas ou meses para alcançar seu destino, indicando que o período de formação terminou, que agora se trata de colocar em prática o que se aprendeu, voltando para a Colômbia e militando na guerrilha.
Aqui surgem os conflitos, pela primeira vez. As experiências dos dois irmãos prepararam-nos para o heroísmo, não para a rotina diária feita de esperas intermináveis, emboscadas e fraquezas, e até mesmo traições, como a dos comandantes que não apenas descumprem seus papéis, como possuem vícios, se acostumam com esses cargos de poder e tratam seus soldados com desprezo.
Os irmãos, que estão separados, sofrem o indizível com aquela experiência da luta que é uma grande espera, feita de rotinas asfixiantes e da silenciosa suspeita de terem se equivocado. Os tiros são muitos e até os dois jovens, que não renunciam, entretanto, ao compromisso revolucionário, fogem dali, com uma espécie de decepção discreta, recalcitrante, ainda que, para ele, os filmes sejam uma redenção e, para ela, a ação social seja uma forma de se redimir e seguir militando.
As conclusões nem estão claras nem Juan Gabriel Vásquez se atreve a mostrá-las. Mas elas estão aí, nos anos gastos naquela luta sem fim, em todos os mortos e feridos, na inesgotável guerra em que um país se desgasta, enquanto as vítimas crescem e se multiplicam, sempre em vão.
Cada leitor deve tirar suas próprias conclusões, naturalmente. Agora, aqueles dois jovens estão longe de ser quem foram, talvez não arrependidos, já que agora estão diferentes, mais lúcidos e mais independentes de tudo aquilo em que acreditaram e foram se tornando. O romance está aí com seu conjunto de experiências, e cada um deve tirar suas próprias conclusões: Até quando continuar matando? O sangue e os cadáveres resolvem os problemas? Há os que acreditam apaixonadamente que sim.
No entanto, não é tão fácil tirar essas conclusões, sobretudo para quem viveu a experiência e levou balas nas costas, como aconteceu com Marianela, que ainda apitam quando ela passa pelos sistemas de segurança dos aeroportos, ou como aconteceu com Sérgio, naquela vez em que duvidou. Essas conclusões não serão fáceis, é preciso refletir sobre elas para conseguir as respostas adequadas, que serão sempre contraditórias.
A obra de um romancista não precisa substituir a visão dos leitores, oferecendo soluções fáceis, libertando-os da tarefa de refletir e decidir por sua própria conta o que teriam feito diante daqueles dilemas com os quais Sérgio e Marianela se debateram. Ambos estão vivos, felizmente, e pelo menos um deles, em seu trabalho como cineasta, deve ter refletido muito profundamente.
Mas o destino de Marianela me deixa em suspenso e aterrorizado, por tudo ao que sobreviveu, educando-se para ser uma guarda vermelha fora do comum. Ela sente que conseguiu? Está contente consigo mesma? Frustrada, mas bem? É impossível saber lendo esse romance excepcional. Mas aí começa o trabalho secreto que suas páginas deixam em nossa memória. O que você teria feito? Arrependerse ou perseverar? E até que ponto? Até converter o mundo inteiro em um bólido flamejante do qual nada nem ninguém pudesse escapar?
Os bons romances não facilitam as respostas, resta aos leitores sensibilizados pela fantasia depositada nessas páginas saber como responder. Fazendo o que fez, o autor dessas páginas excepcionais pode ficar em paz. |
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