‘Chorava escondido para pacientes não verem’, diz médica brasileira em Gaza
Postado em 31 ago 2014
Publicado na bbc.
Há dois anos, a médica brasileira Liliana Mesquita Andrade esteve na Faixa de Gaza e cuidou de várias crianças. Desta vez, durante o conflito mais violento entre Israel e Palestina nos últimos anos, foram poucas.
“Infelizmente, as crianças são a parte mais frágil da guerra. Já chegavam mortas ou quase mortas”, conta a anestesista, de 39 anos.
Pacientes cobertos por poeira, pessoas morando no hospital por medo de voltar para casa e trabalhar com o barulho de bombas são imagens que marcaram a experiência da médica no conflito – que somou 50 dias de combate e deixou mais de 2,2 mil mortos.
“Na primeira noite no hospital ouvi explosões, senti as coisas tremerem”, afirmou à BBC Brasil por telefone, da Faixa de Gaza, onde está desde o dia 7 de agosto.
“Você tem que chorar escondido, porque os pacientes não podem ver que está com medo. Comecei a rezar e pedir que as coisas se acalmassem.”
Mas, em meio ao conflito, Liliana teve um reencontro emocionante: passou uma tarde com um menino de 4 anos que havia atendido em 2012, quando a criança foi atingida por bombas. “Nunca achei que fosse revê-lo. É muito gratificante, não tem dinheiro no mundo que pague.”
Leia abaixo trechos da entrevista:
BBC Brasil – Foram 50 dias de combate e o conflito mais violento desde 2007. O que mais te marcou?
Liliana Mesquita Andrade - A coisa que mais me impressionou não foi a questão propriamente médica, mas ver milhares de pessoas morando no hospital porque o consideravam um lugar mais seguro. Na época que cheguei aqui tinha 2 mil pessoas no hospital, mas não pacientes. Eram pessoas morando nas instalações do hospital, no estacionamento, no jardim, nas escadas.
Também vi muitas crianças que haviam perdido toda a família e outras extremamente feridas, lesões muito diferentes. Por exemplo, recebi uma menina com uma fratura no fêmur na raiz da coxa devido às explosões. A energia necessária pra gerar uma fratura daquela é uma coisa extremamente rara, só mesmo num contexto muito violento.
Essa criança chegou no hospital suja, completamente suja daquela poeira cinzenta de desmoronamento que tem aqui, no Iraque, na Síria. Eles chegavam ou com poeira cinza ou com poeira negra, de fuligem, queimadura. Você não tem tempo nem para perguntar o que houve: tem que agir rápido, porque o tempo que perde conversando pode custar a vida do paciente.
BBC Brasil – Você sentiu medo?
Andrade - Por mais que você venha em um misto de coragem, desprendimento, amor ao próximo e amor à medicina, você tem medo também. Na primeira noite no hospital ouvi explosões, senti as coisas tremerem. Tive que chorar sozinha, porque você não pode demonstrar que está com medo, principalmente para o paciente. Você começa a rezar e pedir para que o cessar-fogo chegue e que as coisas se acalmem.
BBC Brasil – Como você se protegia?
Andrade - O que era recomendado era que ficássemos sempre juntos e dentro do hospital. O centro cirúrgicoé um lugar muito fechado, não tem janela, e a gente está tão concentrado na gravidade do paciente que às vezes nem ouvia as explosões.
Na casa tinha um quarto de segurança, com uma localização mais central. Quando tinha bomba a gente ia para lá e ficávamos todos juntos.
BBC Brasil – O bloqueio afetava seu trabalho e sua vida?
Andrade - Claro que no auge da guerra pode ter ficado mais difícil, mas não a nível de prejudicar o atendimento. Nem sempre as condições eram 100%, mas tinha o suficiente para dar para o paciente.
Só a nossa locomoção ficava prejudicada. Tinha que sair todo mundo junto e voltar junto, sempre num carro identificado pelo MSF, sem ser blindado. Era proibido sair da casa, o tempo todo era casa-hospital, hospital-casa.
BBC Brasil – Como foi a decisão de ir para a Faixa de Gaza em meio ao conflito?
Andrade - Foi a decisão mais difícil que tive que tomar. Eu ia para o Afeganistão, é minha 8ª missão no MSF, mas me pediram para trocar e acabei vindo pela segunda vez para a Faixa de Gaza. Estou nas férias, tenho trabalho no Brasil, mas me programo todo ano pra vir.
Minha família estava extremamente preocupada. Minha irmã pediu pra eu não vir porque já perdemos nossos pais e nosso irmão caçula. Não foi fácil. Mas eu sou muito católica e acho que Deus acaba sempre protegendo todo mundo que faz esse tipo de trabalho.
Estudei pra aliviar o sofrimento, como anestesista. Não importa onde você esteja, você tem que ajudar. Independentemente se é aqui, no Brasil, no Iêmem, no Paquistão, você tem que ajudar.
BBC Brasil – Reencontrou alguém que já tinha conhecido em Gaza?
Liliana Mesquita Andrade - Reencontrei uma criança que há dois anos tinha sido vítima de um explosão e tinha queimaduras no rosto, na mão, nos braços. Tratei dela em um projeto de cirurgia plástica reconstrutora. A cada dois ou três dias precisava de anestesia e eu tinha muito contato com ele. No meu último dia ele, que não falava uma palavra de inglês, olhou pra mim e falou I love you, Lili.
Quando cheguei aqui a primeira coisa que perguntei foi sobre ele. Me falaram que continuava fazendo tratamento, ele ainda tem muitas queimaduras. E ele veio me visitar. Foi a maior surpresa. Comecei a chorar e ele ficou todo envergonhado. Ele lembrava de mim, veio direto no meu colo. O pai disse que ele se recusa a fazer novas cirurgias, porque já sofreu muito, e a família está muito preocupada.
Dei lápis de cera pra ele, brincamos. Essa foi a única tarde em que realmente tive férias. Ao final, perguntei: “Still love me?” E ele falou “I love you” outra vez. É muito gratificante, não tem dinheiro no mundo que pague isso.
BBC Brasil – Como foi a reação ao cessar-fogo?
Andrade - Estávamos todos muito ansiosos pelo cessar-fogo e eu chorei muito, fico até emocionada de falar com você. Parecia final de Copa do Mundo. A alegria deles foi igual à final de Copa no Brasil.
BBC Brasil – Falando em Brasil, é possível fazer alguma comparação entre a situação de Gaza e a do Rio, que muitos consideram uma “guerra urbana”?
Andrade - Ao mesmo tempo em que estava tendo bombas aqui, minha irmã saiu do trabalho um dia no Rio, foi pegar minha sobrinha numa rua em que havia uma favela próxima e estava fechada. Haviam colocado fogo num ônibus, ninguém podia passar. Brinquei com ela: quem está mais em risco, você no Rio, por causa dos traficantes, ou eu na Faixa de Gaza?
BBC Brasil – Você voltaria para a Faixa de Gaza?
Andrade – Com certeza.
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