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Machado de Assis está no livro Rio: 450 anos de histórias, da E-ditora, no texto
Um bom negócio e uma grave lição – a experiência do exílio em O Espelho
Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco. A chinela turca, Machado de Assis (2011, p.125)
A epígrafe deste ensaio é a conclusão de A chinela turca, conto da coletânea Papéis Avulsos em que está O Espelho. Um bom negócio e uma grave lição é a conclusão a qual Duarte, personagem principal de A chinela turca, chega após levar “o major até a porta” (ASSIS, 2011, p. 125). Eis o bom negócio para Duarte: antes o pesadelo do que o tédio. Daí, agradecendo à Ninfa pela lição, Duarte conclui: “Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição” (p. 125). Argumentaremos que essa também pode ser uma conclusão plausível para caracterizar e sintetizar a experiência do exílio em “O espelho”. Por esta razão o título do ensaio é “Um bom negócio e uma grave lição: a experiência do exílio em O espelho” – a proposta é dar rendimento à experiência entediante pela qual Jacobina relata ter passado. O tédio com “t” maiúsculo de Duarte pode ser aproximado do tédio de Jacobina, personagem principal de O Espelho, porquanto nenhuma das atividades que Jacobina apreciava antes do enfardamento – “o sol, o ar, o campo, os olhos das moças” (p. 214) – lhe dá prazer, assim como não o encontra nos “versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões” (p. 218). Exilado do mundo, seu companheiro é o mencionado Tédio. Sem encontrar prazer natural ou cultural, o único remédio de Jacobina será o espelho, que lhe ensinará uma grave lição, retirada da experiência de um bom negócio, que foi a nomeação de alferes.
Espelho contra exílio
O espelho, utensílio doméstico, no conto homônimo de Machado de Assis, parece funcionar como antídoto contra o sentimento de “grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere” (p. 215). Esta é parte da descrição de Jacobina, então em torno dos quarenta ou cinquenta anos de idade, quando o orgulhoso alferes estava insulado do tratamento dispensado pela tia Marcolina, que se devia à notoriedade que o posto da Guarda Nacional conferira ao homem Jacobina.
Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; [...] Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. [...] Olhava para o espelho, [...] e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo, olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão, sem os sentir... (p. 20)
Como Narciso, o autoadmirador da mitologia grega, Jacobina admira-se no “grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples...” (p. 213), bem como ele parecia ser antes da nomeação. Com o reflexo do espelho, Jacobina pôde externalizar o que havia internalizado com o tratamento recebido após a nomeação de alferes da Guarda Nacional. Resultado: “O alferes eliminou o homem” (p. 214). Sem companhia e sem prazeres, o espelho permite-lhe existir à custa da autoimagem internalizada após o enfardamento.
No exílio rural, o espelho torna-se um objeto terapêutico, cuja função é evitar que o “efeito de quatro paredes de um cárcere” esmague o sentimento de “distinção” (p. 212) do homem enfardado, evitando o naufrágio na invisibilidade do passado de Jacobina. Afinal de contas, quem era Jacobina antes do enfardamento? É espelho contra exílio, pois, na ausência de pessoas que possam lhe chamar de alferes, com todo o significado social do vocativo, o espelho comporta a mencionada autoadmiração, que é projeção da alma externa, internalizada por Jacobina, sobre o espelho, tal como o sonho o é de seu desejo:
No exílio rural, o espelho torna-se um objeto terapêutico, cuja função é evitar que o “efeito de quatro paredes de um cárcere” esmague o sentimento de “distinção” (p. 212) do homem enfardado, evitando o naufrágio na invisibilidade do passado de Jacobina. Afinal de contas, quem era Jacobina antes do enfardamento? É espelho contra exílio, pois, na ausência de pessoas que possam lhe chamar de alferes, com todo o significado social do vocativo, o espelho comporta a mencionada autoadmiração, que é projeção da alma externa, internalizada por Jacobina, sobre o espelho, tal como o sonho o é de seu desejo:
O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me, orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro, o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se, com o sono, a consciência do meu ser novo e único - porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... (p. 217)
O exílio de Jacobina, então expatriado da condição de alferes da Guarda Nacional por não ter sequer um patrício para lhe reconhecer a distinção – “Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos” (p. 218) –, deve-se ao efeito que o posto de alferes (condição social que o tornara notável perante a família e sociedade) tem sobre o indivíduo, que provavelmente era invisível até os
[...] vinte e cinco anos, [quando] era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! Tão contente! Chamava-se o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que estes perderam. (p. 212)
Trecho do texto Um bom negócio e uma grave lição – a experiência do exílio em O Espelho, de Vagner Leite Rangel, contemplado pelo edital (Prêmio Literário) Rio: 450 anos de histórias, da E-ditora.
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